domingo, 16 de agosto de 2020

O frágil verniz da racionalidade

Na guerra, a primeira vítima é sempre a verdade, reza o famoso ditado. Já na pandemia, tudo indica que essa vítima é a racionalidade.

Tenho acompanhado com exasperação certas opiniões. Não as do governo, já que de onde menos se espera, dali que não vem nada mesmo. Me refiro a pessoas inteligentes e honestas, algumas cuja opinião eu leio, outras que conheço pessoalmente.

A sensação que tenho é de que, para muitos, a racionalidade é um verniz fino e frágil, que não resiste aos ataques de um evento de grande impacto, como o que vivemos. Removido esse verniz de racionalidade, rapidamente degeneramos para uma espécie de Mad Max intelectual, uma vale-tudo de pensamento mágico que, tudo indica, sempre esteve ali, escondido logo abaixo dessa tênue camada protetora do pensamento racional. A camada - vejo agora - era BEM mais fina do que se poderia supor.

Contexto

Uma hipótese - de que um remédio seja eficaz, de que um tratamento seja melhor do que outro - vem ao mundo com baixa probabilidade de sucesso. Algumas têm uma probabilidade melhor. Mas essas hipóteses de alta probabilidade de sucesso - por exemplo, a hipótese de que beber água limpa seja melhor para você - já foram descobertas e implementadas há muito tempo. Na expressão em inglês, são as "low hanging fruits", as frutas que estão na parte mais baixa da árvore. Estas são as primeiras a ser colhidas. Hoje, nos restam, metaforicamente, apenas as frutas mais altas - as que temos menor probabilidade de alcançar, com mais custo e mais trabalho.

A primeira coisa que precisamos entender é que o número de hipóteses corretas - as hipóteses destinadas a vencer na vida - é infinitamente menor do que o número de hipóteses que resultam ser incorretas. E é lógico que seja assim. Se você tiver um grande molho de chaves - com, digamos, 100 chaves - a chance de que uma chave qualquer consiga abrir a fechadura é muito pequena, se a escolha for aleatória. Há muito mais formas de se estar errado do que de estar correto. É uma questão de lógica.



Por este motivo, não testamos aleatoriamente todas as chaves. Usamos critérios. Chaves que obviamente não cabem na fechadura são descartadas. Chaves cuja marca é a mesma da fechadura - assumindo que haja marca - são priorizadas. Ainda assim, a chance de que uma chave escolhida seja correta segue sendo baixa. Por isso, usamos o conceito de hipótese nula: para uma chave específica, parte-se do princípio de que ela NÃO irá funcionar. Caso ela consiga abrir a fechadura, refuta-se a hipótese nula. A partir desse momento, temos evidência de que essa chave é a correta. O motivo pelo qual partimos da hipótese nula não é por sermos pessimistas. É apenas um fato estatístico da vida - quanto maior o molho de chaves, o mais provável é que uma chave não funcione. Essa é a hipótese default do universo em que vivemos.

A vida não é nada fácil no mundo do desenvolvimento de novos fármacos. Para cada novo composto que a indústria desenvolve, as chances de chegar a uma nova droga são mínimas. E não, a indústria farmacêutica não é burra. A tática não é a de tentar todas as milhares de chaves do gigantesco chaveiro para ver qual, ao acaso, encaixa na fechadura. Os compostos são pré-selecionados com base na BIOPLAUSIBILIDADE. Após estudar detalhadamente as rotas metabólicas (ou a estrutura de um micro-organismo), moléculas são desenvolvidas para interferir com tais estruturas (enzimas, receptores, etc) o quê, segundo a lógica e baseado nos mecanismos, deveria produzir o efeito desejado. Ou seja, é algo PLAUSÍVEL do ponto de vista BIOLÓGICO. No nosso exemplo acima, isso equivale a selecionar apenas as chaves que, visualmente, são compatíveis com o buraco da fechadura e têm a mesma marca.

De cada 5000 compostos promissores, com bioplausibildade, que "deveriam funcionar pela lógica", apenas 5 chegam ao ponto de ser testados em seres humanos. Destes, apenas 1 é aprovado. Ou seja, a chance de que uma molécula que, tudo indica, pelo mecanismo, deveria funcionar, efetivamente funcionar em humanos a ponto de virar um novo remédio é de 1 a cada 5000, ou 0,02%. E é por isso que, quando se vai testar um novo tratamento, assume-se a hipótese nula (a de que não funciona), não porque somos chatos ou estraga-prazeres, é porque somos realistas. O universo de hipóteses PROMISSORAS porém erradas será SEMPRE ordens de magnitude maior do que o universo pequeno das hipóteses verdadeiras.

Futebol
Existem muitos exemplos dentre as atividades humanas que têm um funil igualmente estreito. Vamos pensar no seguinte exemplo: digamos que seu sobrinho seja muito bom de bola. Muito acima da médias dos colegas. O professor não para de elogiar o menino, e o coloca para jogar com a turma dos mais velhos, pois seu desempenho é fora da curva. PERGUNTA: é possível que ele venha a ser o próximo Cristiano Ronaldo? Possível é, mas é PROVÁVEL? Esse é aquele momento que nos damos conta de que existem muitos MILHARES de meninos bons de bola, mas o processo seletivo é cruel e altamente competitivo. A grande maioria desses meninos, por mais promissores que possam parecer, jamais será profissional; se for profissional, jamais o será de um time grande; se for de um time grande, tem pouca chance de ser titular; e, por fim, mesmo na improvável hipótese de chegar a ser titular de um time grande - quantos desses serão um Pelé ou um Cristiano Ronaldo?

Por isso existem tantas etapas no processo seletivo de jogadores. Todos começam com baixa plausibilidade de vir a ser um craque. Alguns se destacam, e são escolhidos por algum "olheiro" para integrar as categorias de base de algum time menor. Campeonatos acontecem, e jogadores cada vez mais promissores são selecionados. Quando finalmente um jogador é comprado por um grande time da Europa, sua plausibilidade já é muito mais alta. É então que esse jogador passa a ter chances reais de ser o próximo Cristiano Ronaldo. O pai do rapaz dirá que SEMPRE SOUBE que ele estava destinado a ser o melhor. Mas isso é uma afirmação "ad hoc" - depois do fato. 15 anos atrás, milhares de pais pensavam a mesma coisa - e com bons motivos! - seus rebentos jogavam mesmo acima da média; era PLAUSÍVEL que viessem a ser craques no futuro. Mas, para um observador neutro, lá no início, o lógico é partir da hipótese nula, isto é, que aquele menino, embora jogue bola muito bem, provavelmente será garçom, recepcionista, médico ou qualquer outra coisa. A maioria dos meninos promissores permanecerão apenas isso - promissores.

Esta alegoria serve para várias coisas. Primeiramente, o cientista não deveria se apaixonar por sua hipótese. A mãe sempre vai achar que o SEU filho será o próximo Cristiano Ronaldo. Mas um observador mais racional sabe que a hipótese nula é a mais provável. Assim, não cabe ao mundo provar que aquele menino não é o maior craque de todos. Isso seria uma inversão do ônus da prova. Cabe ao craque se destacar.

A indústria farmacêutica sabe disso. Bilhões de dólares estão em jogo. Quando um novo composto é considerado promissor por uma questão de BIOPLAUSIBILIDADE, ele é testado primeiramente em tubo de ensaio. Ali, alguns compostos falham. Outros parecem promissores. Estes avançam para uma próxima etapa - testes em modelos animais. Trata-se de um GRANDE funil: muitos compostos que pareciam promissores caem fora nessa etapa seletiva. Alguns são tóxicos demais e matam o animal; outros têm efeitos não antecipados, em outras vias metabólicas nas quais não se havia pensado, resultando em efeitos adversos intoleráveis. Mais uma vez, inúmeros compostos sucumbem a essa fase. Outro problema muito comum é o de que o composto não atinge concentração suficiente nas células em que seu efeito se faz necessário: uma coisa é banhar células diretamente com uma solução daquele fármaco; outra bem diferente é administrá-lo por via oral, e descobrir que ele não atinge as mesmas concentrações no órgão alvo. Mais uma vez, inúmeros compostos promissores são descartados nessa fase.
Sobraram poucos compostos candidatos - os campeões das categorias de base da farmacologia. Mas o pior ainda está por vir - o funil segue estreitando-se.
Tradicionalmente, os testes de fármacos em seres humanos são feitos em diferentes fases ELIMINATÓRIAS. O composto, já razoavelmente promissor, tendo deixado para trás quase 5000 competidores, tem ainda uma chance menor do que 20% de virar uma medicação eficaz.

A fase 1 serve para descobrir a tolerabilidade e toxicidade em voluntários humanos. Também costuma testar diferentes doses para definir qual a melhor dosagem. São estudos pequenos, que não têm como objetivo testar eficácia. Vários compostos promissores serão eliminados nesta fase por toxicidade.

A fase 2 serve para estabelecer se a droga tem alguma atividade biológica em humanos e se mostra alguma evidência de eficácia. Em geral são estudos randomizados de pequeno porte, no qual um grupo é sorteado para receber a droga e outro para receber placebo. Cerca de 80% das drogas testadas irão falhar em estudos fase 2 (ou seja, a hipótese nula, a de que a nova droga é igual ao placebo, não conseguirá ser refutada).

A fase 3 é a Copa do Mundo dos estudos clínicos. É a fase mais complexa, MAIS CARA, e que envolve o maior número de pacientes. Por isso mesmo, não testa remédios aleatórios, pois, como já vimos, toda a droga (e, por extensão, toda a hipótese) começa com uma probabilidade baixíssima de ser campeã (ou seja, se se mostrar eficaz). Todo o processo prévio - as fases pré-clínicas in vitro e em animais, as fases I e II em humanos - serve para filtrar os compostos que são realmente promissores - a nata dos compostos - para chegar neste momento. Um típico ensaio clínico randomizado fase III custa perto de 50 milhões de dólares. Seria uma insanidade empregar esse tipo de esforço em drogas aleatórias. Quando um composto entra em um estudo fase 3, entre 25% e 30% das vezes o composto irá demonstrar eficácia e segurança, sendo então oficialmente aprovado pelas agências reguladoras. OBSERVE que, mesmo nessa fase, em que a o composto já passou por todas as etapas anteriores, A MAIORIA deles se mostrará INEFICAZ (ou não seguros) nos estudos de fase 3. Não é fácil ser Cristiano Ronaldo!

O estranho fenômeno da hidroxiclorquina
Vamos imaginar um rapaz muito promissor - Cloroquínion da Silva - o melhor jogador de futebol da sua escola, uma das incontáveis escolas de um grande e populoso país. Acontece que o presidente deste país (Trump, por exemplo) gosta muito deste rapaz, como se fosse seu filho. Logicamente, ele pensa "este menino com certeza é o próximo Cristiano Ronaldo"! Há milhares de jogadores promissores espalhados pelas escolas deste país, e seus pais acham que o seu filho será o melhor de todos. Mas, como sabemos, a maioria deles terminará como garçom ou médico, mas não como um novo Cristiano Ronaldo. Acontece que o padrinho de Cloroquínion é o presidente. E, como presidente, ele tem o poder de fazer Cloroquínion pular etapas. O restante dos candidatos a craque passará por muitos campeonatos, que naturalmente deixarão muitos para trás, e, depois de alguns anos e de muito esforço, terão selecionado alguns jogadores realmente muito acima da média. Dentre eles, alguns poucos serão realmente craques. Eles são escolhidos para compor a Seleção Nacional do país em questão. Mas, por um arroubo de vontade do presidente, Cloroquínion, sem nunca ter jogado além do campenato interno da sua escola, é escalado para fazer parte da Seleção. Diferentemente dos demais, ele não chegou lá por mérito. Sim, há um mínimo de plausibilidade ("ele bate um bolão no time da escola"), mas isso (saber jogar) é uma condição que TODO o jogador tem. E, mesmo assim, a chance de que um deles venha a ser um Cristiano Ronaldo segue baixa. Qual a chance de que esse alguém seja JUSTAMENTE Cloroquínion? Qual a chance de que, em nosso molho de 5000 chaves, a escolhida pelo presidente (Trump) seja justamente a que vai encaixar no buraco da fechadura metafórica?

O único motivo pelo qual falamos sobre hidroxicloroquina (HCQ) fora do contexto da malária, lúpus e artrite reumatoide é porque o presidente Donald Trump teve uma forte intuição de que deveria ser bom. De onde ele tirou isso? Resulta que um microbiologista francês, Didier Raoult, publicou um estudo que era um verdadeiro desastre em termos de metodologia científica. E este estudo teria ficado relegado às páginas esquecidas da história, um dos tantos exemplos de como o mecanismo do peer review deixa passar erros crassos. Acontece que um advogado americano chamado Gregory Rigano (um entusiasta da tecnologia blockchain, não um cientista) apareceu no programa noturno de Laura Ingraham na Fox News norte-americana, a rede de TV preferida de Donald Trump e da extrema direita daquele país. Como narra a revista Piauí, "Rigano, que na época se apresentava como consultor da Escola de Medicina de Stanford, o que era mentira, havia publicado um relatório celebrando o potencial da cloroquina: “Um tratamento eficaz para o coronavírus (Covid-19).” Era um documento composto no Google Docs e formatado para se parecer com uma publicação científica. O relatório tinha começado a circular na mídia direitista e também no Vale do Silício – Elon Musk tuitou um link para o texto. Raoult viu o documento e percebeu a atenção que ele estava recebendo na internet. Outro pesquisador poderia ter achado irresponsável e perigoso aquele tipo de publicação. Raoult, porém, começou a se corresponder com Rigano e com seu coautor, James Todaro, oftalmologista e investidor de bitcoin. E os autorizou a compartilhar os resultados que obtivera, mas que ainda não tinham sequer sido publicados."
E foi assim que Donald Trump se convenceu, através de um show de entretenimento da Fox News, que a hidroxicloroquina era a cura da Covid-19. Como na alegoria acima, Cloroquínion foi incluído na Seleção porque o presidente gostou dele, não por mérito. 

Que Trump ou Bolsonaro considerem a HCQ como a salvação da pandemia não me espanta. Como eu dizia no início desta postagem, o que me causa espécie são as opiniões de pessoas inteligentes e honestas, inclusive de médicos de renome.

Iluminismo
Se você está lendo este texto em seu smartphone, tablet ou computador pessoal, e se não corre o risco de ser preso, torturado e morto por discordar do governo, você deve isso a um movimento intelectual e filosófico do século 18 chamado Iluminismo. O que nos separa da Idade Média não é apenas o passar dos séculos. Nas palavras da Wikipedia, "O Iluminismo incluiu uma série de ideias centradas na razão como a principal fonte de autoridade e legitimidade e defendia ideais como liberdade, progresso, tolerância, fraternidade, governo constitucional e separação Igreja-Estado". A constituição dos EUA, com sua tripartição de poderes e seus sistemas de freios e contrapesos (que, neste quesito, foi imitada pelo Brasil em 1988), é fruto deste movimento. Seu smartphone também. Foi o método científico que permitiu à humanidade dominar a matéria a ponto de fazer estas palavras aparecerem no dispositivo no qual você as lê - não a intuição de um presidente ou de quem fosse. É um triunfo de 300 anos de racionalidade.


Na Idade Média, o pensamento dominante era o pensamento mágico. A natureza era algo misterioso, comandada por deuses e demônios. Doenças eram maldições causadas por entidades sobrenaturais. Incontáveis senhoras idosas foram mortas e torturadas por séculos por causa de, entre outras coisas, epidemias. E não, elas não morreram por causa dos vírus, elas foram assassinadas. Por causa da irracionalidade, do pensamento mágico e das crendices, as várias pestes do nosso passado foram atribuídas a rituais de magia negra conduzidos por bruxas. Se muitas pessoas estavam morrendo de uma peste misteriosa, não podíamos ficar apenas assistindo sem fazer nada!! Mulheres idosas eram então acusadas de bruxaria, torturadas até confessarem seus crimes e então queimadas. Tempos depois, a peste passava, confirmando que a culpa era, de fato, das bruxas. Muitos séculos depois, presidentes fazem o mesmo raciocínio ("tomei um remédio e estou curado, logo o remédio foi a causa da cura").

A miséria da racionalidade
O que nos separa da Idade Média não é tanto o tempo - é a racionalidade. A racionalidade é o que faz com que sua avó seja protegida da pandemia em casa, e não queimada na estaca para combater a peste. É a diferença entre temer forças sobrenaturais e tentar apaziguá-las com rituais, versus entender as forças naturais e atuar sobre elas de forma científica. Se hoje não usamos mais sangrias e sanguessugas para drenar as "toxinas" do corpo, é por causa do método científico. Como eu disse no início dessa postagem, fico assustado ao constatar que a racionalidade iluminista é um fino verniz, nada mais que uma máscara. No primeiro desafio, essa máscara cai, revelando que somos ainda homens da Idade Média, prontos para testar qualquer coisa, de forma aleatória.

"Mas que mal poderia fazer?"
Suponhamos que Donald Trump tivesse ouvido na Fox News que sanguessugas são úteis no tratamento da Covid-19. E que um cientista francês mostrasse que a maioria das pessoas que usaram sanguessugas melhoraram (e isso seria verdade, visto que a maioria das pessoas melhoram, com sanguessugas ou sem). Quando alguém dissesse, exasperado "mas isso é um tratamento medieval!", era muito provável que a resposta fosse "mas que mal poderia fazer?" É um tratamento de baixo risco, e minha tia usou e ficou boa.

O problema é a morte lenta da racionalidade. Cada vez que médicos e autoridades de saúde adotam medidas irracionais, uma vela do Ilumismo se apaga. Sancionar - com a autoridade médica ou governamental - uma medida que carece de evidências é sancionar todas as medidas que carecem de evidência.

Quando eu li a notícia de que um prefeito de uma cidade de Santa Catarina estava propondo o tratamento da Covid-19 com ozônio retal, caí na gargalhada. Eu achei - mesmo - que fosse piada. Não era. O referido município já fornecia, com dinheiro público, hidroxicloroquina (um antimalárico), ivermectina (um remédio para vermes e sarna), cânfora (??) e agora propunha o ozônio retal.

Sim, vivemos numa distopia, mas a culpa é também dos médicos, não apenas de alguns políticos. Ou você realmente acha que seria possível abrir a caixa de Pandora da irracionalidade medieval, pegar apenas a hidroxicloroquina lá de dentro, e fechar a tampa? Uma vez que médicos renomados passem a receitar (e dizer publicamente que usam) um medicamento que não foi testado, não há como fechar a caixa. A cada cloroquina prescrita, o ozônio se aproxima um pouco mais do nosso reto coletivo.

A bioplausibildade pavimenta o caminho para o inferno.
Você lerá por vezes que há um racional científico por trás do uso da HCQ na COVID-19. Afinal, estudos in vitro demonstram a inibição da replicação viral, por mecanismos que envolvem o pH das vesículas intracelulares. Quem não tem experiência com ciências biológicas (a maioria dos médicos se incluem nesta categoria) poderia se impresionar com isso. O fato da vida é que a esmagadora maioria de tudo que apresenta plausibilidade biológica não irá funcionar no tratamento ou cura de doenças. Ter plausibilidade biológica não é garantia de nada. É apenas uma condição necessária para que um tatamento/remédio possa começar a longa trajetória de testes pré-clínicos e testes clínicos de fase 1, 2 e 3. Como já dissemos acima, apenas 1 a cada 5000 compostos consegue este feito. E TODOS tinham plausibilidade biológica.
Na analogia do futebol, a plausibilidade biológica é o equivalente a ser um menino bom de bola. Todo craque (Pelé, Cristiano Ronaldo, Messi) foi um menino bom de bola, mas quase nenhum menino bom de bola será um Cristiano Ronaldo ou um Pelé. Só porque o garoto joga bem, não significa que ele deve ser escalado para a final da Copa do Mundo sem ter uma carreira de sucesso antes. O fracasso seria praticamente garantido.

O Dr. Luis Correia, autor do excelente blog Medicina Baseada em Evidências, escreveu um maravilhoso texto sobre a inversão do ônus da prova. Leia a postagem, e escute o podcast dele. Para nós, vale aqui salientar alguns pontos.
  1. Não se pode provar um negativo. Nenhum estudo pode provar que algo NÃO funciona. A ideia de empregar coisas aleatórias, já que não há alternativa melhor, usando como justificativa a ideia de que não há estudos que demonstrem que NÃO funciona é irracional. Qual o estudo que mostra que cânfora ou ozônio retal não funcionam? Qual o estudo que mostra que queimar bruxas na estaca não funciona? O método científico é o contrário! Você parte do princípio de que algo NÃO funciona (pois o mais provável é que não funcione mesmo), e o ônus da prova recai sobre quem postula que é eficaz. Para isso, é necessário fazer a prova de eficácia, em um ensaio clínico randomizado. Se você está lendo isso num smartphone, é por causa da química, não da alquimia. Não foi a mistura aleatória de produtos químicos que culminou na sua bateria de lítio.
  2. O fato de haver pelo menos 5 ensaios clínicos randomizados que não mostraram efeito da HCQ sobre os desfechos da COVID-19 não prova que a HCQ não funciona, pois não se prova um negativo. A questão é outra: o que nós aprendemos testando algo cuja probabilidade pré-teste já era absurdamente baixa? Cloroquínion foi pinçado pelo presidente da república e colocado na final da Copa do Mundo e - vejam só! - não mostrou ser o novo Cristiano Ronaldo. Alguma surpresa nisso? Ele não foi campeão em sucessivos torneios - não houve sucesso em estudos fase I e II - por que alguém apostaria que seria o grande campeão? Porque Donald Trump gostou do que viu na Fox News?
  3. Quando você testa uma hipótese, e encontra uma diferença entre os grupos (do remédio e do placebo, por exemplo), sempre há uma possibilidade de que a diferença não seja real, e deva-se exclusivamente ao acaso. É isso, em termos gerais, que o "P" dos testes estatísticos tenta medir - a probabilidade de que a diferença observada deva-se apenas ao acaso, sendo portanto a hipótese nula verdadeira. Um P=0,05 significa que esta probabilidade é de 5%, ou seja, 1:20. Se você testar muitas vezes alguma coisa, há alta probabilidade de que algum dos estudos mostrará uma diferença estatisticamente significativa POR PURO ACASO, e que não corresponde a algo real. Por este motivo, é muito perigoso testar coisas com BAIXA probabilidade pré-teste em estudos de fase 3. Porque, por puro acaso, um estudo pode demonstrar resultado falsamente positivo. Por isso, repito, os vários ensaios clínicos randomizados da HCQ não provam que ela não funciona. O iminente ocaso do iluminismo está no fato de que estamos a usá-la com dinheiro público sem que haja prova de conceito (positiva) de que funciona. O simples fato de estarmos falando sobre este assunto já é uma falha civilizacional.
  4. Mesmo quando uma intervenção funciona, a magnitude do impacto individual é pequena. Coisas que comprovadamente são eficazes, como o tratamento da hipertensão para a prevenção de derrames, tem NNT da ordem de 50-60 (ou seja, você precisa tratar 50 pessoas para que uma se beneficie). Em outras palavras, se uma medicação fosse funcionar para COVID-19, não seria algo óbvio, no qual quem toma sobrevive e quem não toma morre - isso é pensamento mágico. Se diferença houvesse, seria algo discreto, e seria necessário um ensaio clínico randomizado com centenas ou milhares de pessoas para detectar as diferenças entre grupos.
Não é a primeira vez na história recente que a histeria coletiva se concentra em um tratamento irracional. Quem não lembra da "pílula do câncer", a fosfoetanolamina? A febre da fosfoetanolamina surgiu em 2016 quando um químico, professor aposentado da USP, Gilberto Orivaldo Chierice, espalhou a notícia de que este composto era a cura do câncer, com efeitos muito superiores ao da quimioterapia, sem os efeitos colaterais. Logo a pressão popular chegou a níveis insustentáveis, o que levou à aprovação de um projeto de lei - proposto, entre outros, por Jair e Eduardo Bolsonaro e sancionado pela então presidente Dilma Rouseff - liberando o uso da fosfoetanolamina mesmo que a droga jamais houvesse sido testada em humanos. Em 2017 o ensaio clínico randomizado de fase 2 foi interrompido por futilidade (não havia, obviamente, evidência se atividade biológica). Quantas pessoas deixaram de seguir tratamentos baseados em evidência perseguindo essa maluquice? Quanto dinheiro público foi gasto nesse estudo baseado em opinião de políticos e pressão popular?

Que a humanidade não aprende com a história é um fato autoevidente. A diferença - a GRANDE diferença - entre esse episódio lamentável de 2016 e o atual é que, naquela época, os médicos eram uma força pela RAZÃO. Hoje, eles carregam as tochas e os garfos da Idade Média, conduzindo a horda da insensatez.


A Covid-19 é um desastre do ponto de vista social, mas o risco individual é baixo. A esmagadora maioria das pessoas que contrair a doença ficará curada, independentemente do que faça. Mesmo em pacientes internados, a maioria irá sobreviver. É o terreno fértil para todo o tipo de viés. Eu tomo babosa com mel e não morro de COVID-19, logo a babosa me curou. Não é diferente da afirmação recente do nosso presidente e de um conhecido jornalista da CNN Brasil.

O que me traz de volta ao ocaso da racionalidade. A hidroxicloquina não é, ao contrário do que se diz por aí, uma droga muito tóxica. Complicações como arritmias cardíacas acontecem, é fato, mas são incomuns. Muitos médicos, movidos por boas intenções, dizem "por que não usar, já que não há alternativas"? A primeira resposta, de natureza puramente médica, é que isso não é o que se faz em medicina em nenhuma outra doença, incluindo as que são muito mais graves e que apresentam letalidade muito maior do que a COVID-19. Por que não usamos remédios aleatórios em esclerose lateral amiotrófica ou sepse? Porque não usamos HCQ ou algo do gênero nas epidemias de gripe? A segunda resposta é de natureza filosófica: ao consentir e dar legitimidade ao irracional, estamos refutando 300 anos de iluminismo. Subitamente, ozônio retal parece justificado. Afinal, o ozônio mata micro-organismos - existe portanto plausibilidade biológica. O presidente Trump, com o mesmo grau de astúcia, chegou à conclusão que se injetássemos desinfetante nas pessoas, poderíamos curar o vírus - afinal desinfetante mata vírus (algumas pessoas tentaram e morreram nos EUA). Abre-se uma caixa de Pandora da qual todo tipo de tratamento alternativo sairá com a sanção tácita de médicos de renome que renunciaram à racionalidade. Se pode HCQ e ivermectina, porque não homeopatia ou outros tipos de pensamento mágico? Todo o tipo de tratamento altamente duvidoso como soros rejuvenescedores, terapias "quânticas", prescrição de incontáveis suplementos e fórmulas intermináveis da "medicina alternativa" são baseados em bioplausibilidade (às vezes nem nisso). É isso mesmo que queremos? O mal que a prescrição da HCQ faz não é ao ritmo cardíaco; a HCQ é mais um prego no caixão da racionalidade.

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