terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

A mutante narrativa do campo anti-low-carb

Este texto foi escrito a convite do Francisco Silva, gestor do site www.PaleoXXI.com e presidente da Associação PALEO XXI, em Portugal, para ser publicado na revista Paleo XXI, que circula nas bancas por lá. Foi publicado na edição de dezembro 2019/ janeiro 2020. Com permissão do Francisco, reproduzo, abaixo, o texto na íntegra.

A mutante narrativa do campo anti-low-carb

Há quase 9 anos acompanho muito de perto a literatura científica no que diz respeito à alimentação pobre em carboidratos (“low-carb”) e saúde. Desde então, os estudos evidenciando os efeitos benéficos dessa intervenção para sobrepeso, obesidade, pré-diabetes, diabetes, resistência à insulina e síndrome metabólica vêm-se acumulando. Como trata-se de intervenção de estilo de vida, com baixos riscos e demonstrada eficácia, a ampla disseminação de tal informação deveria ter sido muito fácil. Mas não é o que tem ocorrido. A resistência do campo anti-low-carb é feroz. Tal resistência assemelha-se à hidra, o lendário monstro da mitologia grega, com várias cabeças: cada vez que se lhe cortava uma cabeça, nasciam outras duas. De forma semelhante, a narrativa do campo anti-low-carb muda a cada vez que a ciência demonstra que suas alegações são desprovidas de embasamento. O monstro não morre, apenas brotam-lhe novas cabeças. 

As primeiras objeções diziam respeito à gordura na dieta. A gordura era o inimigo. Comer gordura, diziam, engordava, e além disso entupiria as suas artérias. Grandes metanálises indicaram que a gordura da dieta não tinha nenhuma relação com doença cardiovascular, e muito menos com mortalidade por todas as causas. E as dezenas de ensaios clínicos randomizados mostravam perda de peso, a despeito da quantidade de gordura no braço low-carb dos respectivos estudos ser mais elevada.

Gorduras não eram o problema? Ah, então o problema são as proteínas! Proteínas, nos disseram, fazem mal para os rins! Esqueceram que uma dieta low-carb não é hiperproteica. E, mesmo que fosse, estudos observacionais não mostram relação entre consumo de proteínas e desenvolvimento de insuficiência renal. Ah, mas de certo irá sobrecarregar o fígado! Mas a ciência, essa inconveniente, mostrava justamente o contrário - todos os estudos indicavam benefícios da restrição de carboidratos (e do aumento de proteínas) sobre o funcionamento hepático.

Em seguida, vários ensaios clínicos randomizados (os estudos com maior nível de evidência científica) começaram a mostrar superioridade de low-carb para perda de peso e para o controle de diabetes. A narrativa passou então a salientar que low-carb não era TÃO BOA assim. Que estudos nos quais as calorias eram artificialmente mantidas fixas indicavam resultados iguais (nada mais óbvio); que, ao final de 12 ou 24 meses, não parecia haver diferenças (esqueciam de mencionar que, ao final deste tempo, a maioria não estava mais seguindo nenhuma estratégia dietética). Reparem que agora não mais se tratava de afirmar que low-carb não funcionava, e sim de que low-carb não era TÃO BOA assim - era apenas IGUAL às demais dietas. Como assim? Pouco tempo atrás as mesmas pessoas afirmavam que a estratégia era perigosa e não funcionava, e agora as mesmas pessoas fazem questão de dizer que funciona tanto quanto - mas não mais - do que as outras estratégias que eles sempre defenderam! Cortava-se uma cabeça da hidra, e outras cresciam em seu lugar.

A recente admissão pela ADA (Associação Americana do Diabetes) de que low-carb é a estratégia nutricional mais estudada em diabetes, bem como de que se trata da que produz as maiores quedas de hemoglobina glicada com redução simultânea da necessidade de medicamentos, colocou low-carb oficialmente nas diretrizes. Mais uma cabeça da hidra foi cortada. Não tardaria para que brotassem novas.

As cabeças mais recentes apontam para a carne. Você poderia alegar: “mas low-carb não precisa necessariamente de carne”, e estaria correto. Não obstante, a narrativa evolui nesse sentido, e tem sido muito eficaz. E trata-se de de uma narrativa muito mais forte do que as anteriores, eis que ataca por diversos ângulos simultaneamente - é um monstro de muitas cabeças!

A alegação de que carne vermelha faz mal à saúde é antiga, e é - ela mesma - uma narrativa mutante. Originalmente, a crítica era direcionada à gordura da carne. Como já vimos, tal crítica foi desmontada por vários estudos. Então surgiu outra cabeça, tentando correlacionar a carne com câncer colorretal. Mas tais estudos são estudos observacionais eivados de variáveis de confusão (os maiores comedores de carne em tais estudos também fumam mais, bebem mais, são mais obesos e sedentários). E há alguns fatos inconvenientes, tais como o European Prospective Investigation on Cancer and Nutrition (EPIC) no qual vegetarianos apresentaram mais câncer colorretal do que os que comiam carne, ou o fato de que não se consegue induzir câncer de cólon em animais de laboratório com carne.

Mal conseguimos cortar as cabeças das falsas alegações de saúde, e surgiu com força uma cabeça gigante: o consumo de carne estaria ligado ao aquecimento global e ao desperdício de água. Se você come carne, dizem-lhe, está destruindo o futuro de seus filhos e netos! 

Contudo, é um fato básico da ecologia que o CO2 emitido pelos ruminantes advém do capim que comem, capim esse que, para crescer, retirou O MESMO CO2 da atmosfera - não é CO2 novo, é um ciclo, que existe há milhões de anos. E o metano? Metano é um gás transitório, que é convertido em CO2 em cerca de 12 anos e, desta forma, volta ao capim que lhe deu origem. Se nossa preocupação for com o CO2 novo adicionado à atmosfera, bem, este vem dos combustíveis fósseis, que estão enterrados há 100 - 200 milhões de anos, e que portanto estavam FORA do ciclo fotossíntese-respiração deste planeta. É ridículo culpar ruminantes pelo que a indústria e os transportes estão a jogar na atmosfera.

O argumento do consumo de água é ainda mais falacioso. Quando se fala que 1 quilo de carne requer 15 mil litros de água, cerca de 95% disso é água da chuva! O que é bizarro, pois alguém acredita que a água deixaria de chover sobre a pastagem se o gado ali não estivesse? E a água que o gado bebe? Volta ao ambiente como vapor, urina e esterco. Isso não apenas não contamina a água, como na verdade fertiliza a pastagem e ajuda a sequestrar carbono no solo. A monocultura, contra a qual não se ouve falar quase nada nos dias de hoje, é que contamina aquíferos e rios com fertilizantes e pesticidas, além de desviar aquilo que seria destinado ao consumo humano para uso em irrigação - água essa que retorna contaminada para os rios, diferentemente do que ocorre com a água da chuva nas pastagens. Ademais, culturas alagadas liberam grande quantidade de metano, mas você não escuta as mesmas pessoas que criticam o consumo de carne vociferando contra o arroz. 

Recente documentário produzido por James Cameron e estrelando Arnold Schwarzenegger apresenta a hidra completa, no esplendor de todas as suas cabeças. Uma tremenda peça de propaganda, desenhada meticulosamente para avançar uma agenda vegana. Muitas pessoas serão vítimas dessa estratégia. E muitos têm a ganhar com a venda de alimentos ultraprocessados para substituir aquilo que não precisava ser substituído. Trata-se da velha tática de criar um problema a fim de vender a solução. Diga-se de passagem, James Cameron é dono da Verdient Foods Inc, que acaba de investir 140 milhões de dólares na Ingredion, fabricante de proteína extraída de ervilhas... 


Frente a esse monstro de múltiplas cabeças, é fácil ficar intimidado. É uma luta muito desigual. Como reza o ditado, uma mentira já deu meia-volta ao mundo no tempo que leva para uma verdade calçar seus sapatos. Temos apenas uma defesa - a informação de qualidade. Nesses tempos sombrios, expor a verdade é um verdadeiro ato de subversão, e comer carne tornou-se um manifesto de resistência. A moda low-fat durou 40 anos, mas acabou cedendo. Cabe a nós cortar as novas cabeças da hidra, mesmo que leve décadas.

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